Monday, December 19, 2005

O herói negro - rascunho

O herói negro

Agradecimentos:
Ao Professor Eduardo Seikman, da Universiade de São Paulo, que me fez viajar nos caminhos mais escondidos da mente filosófica e me incentivou a escrever. Com sua simplicidade, talvez ele não tenha se dado conta da importância que tiveram algumas palavras de incentivo com as quais me presenteou.



Poesia

Desenhar o teu rosto.....
Os anjos recusaram responder-me
E nunca me disseram o nome das coisas inexistentes
Assim nunca as pude escrever no papel
Fugas absurdas abraçavam a tinta evaporando a cor negra das palavras
E os cadernos recusavam abrir as páginas em branco
Encerrando-se nas capas hirtas e magoadas pelo teu insistir
Desiste e espera até ao acordar das palavras
O namoro entre elas e as folhas em branco está próximo
Cantam que será nas noites solitáriasTalvez aí quem sabe.......
Nunca vi o teu rosto desenhado nos olhar
Podes afastar a sombra que o oculta de mim
Ainda sobra espaço para o acolher e tocar
Ainda existe espaço para desenhar nele um sorriso
Posso?!!! Posso começar?!!!


RETIRADO DO ENDEREÇO: http://andarilho.blogs.sapo.pt/arquivo/2004_08.html



Capitulo 1
Primeira lição, o aviãozinho azul
O pai gostava do pequeno a seu modo. Como dizem os antigos, os brutos também amam. As vezes chegava em casa com uma ou duas cachaças a mais na cabeça e, em estado de alegria exagerada, começava a brincar com o pequeno.Jogava-o para cima e o agarrava antes da queda. Isto fazia o pequeno estremecer com o frio na barriga que sentia cada vez que descia e era aparado pelo pai antes da queda.Mas ele no fundo gostava de voar nos braços dele. As vezes a brincadeira era outra. A de enrolar na coberta e não deixar sair. O pai segurava as pontas do cobertor de modo que o pequeno ficava como um peixe dentro da rede. O menino detestava esta brincadeira, mas sabia que o pai não fazia por mau, ele era bruto assim mesmo. As vezes, quando o pequeno chorava sufocado no meio das cobertas, o pai o soltava e dizia.
----Vixi, que marica chorona. Seja homi muleque!
Mas nem tudo eram só brincadeiras brutas. Quando o pai colocava o pequeno de cavalinho no ombro, o pequeno adorava. Ás vezes o pai levava o pequeno na cidade. A principio eles iam andando pela estradinha de terra, mas quando o pai via que o pequeno estava cansado e começava a diminuir o passo, colocava-o no ombro e lá iam os dois para a cidade. O pai sempre tentando ensinar alguma coisa ao pequeno.
----Muleque, dizia ele, você tem que aprender mais do que eu para não ser um burro de carga como eu sou. Sai da Bahia ainda muito moço. Queria estudar mas meu pai não deixava, dizia que não podia pagar meus estudos e que eu era mais útil capinando no roçado. Meu irmão, Porfírio, este sim estudou ás custas do velho, virou advogado.Mas eu tive que sair de lá fugido e vir para São Paulo para tentar estudar e ser gente. Mesmo assim só consigo escrever pouco... e assim o pai prosseguia numa conversa cumprida que dava até gosto. O pequeno ouvindo tudo calado. O pai falava sobre a época de plantio da cebola, das hortaliças, sobre as diversas luas. Lua para plantar, lua para podar, lua para colher. Segundo o pai, se alguém plantasse as coisas em lua errada, não colhia era nada. O pequeno ficava imaginando a lua como uma rainha que mandava na plantação.
---Agora pode crescer.
---Agora não pode.
Mas como é que a lua lá do céu podia mandar nas plantas aqui na terra? Será que a lua falava? Mas ele não perguntava nada disto ao pai com medo do pai dizer que ele era burro feito o Jaime, seu irmão mais velho. Vira e meche o pai falava mal do Jaime. Disto o pequeno não gostava. O pai dizia que o Jaime era vagabundo e que isto estava no sangue. O pequeno ficava mesmo era com raiva do pai quando falava mal do Jaime, seu herói. Mas não dizia um “a” não, que era para o pai não chama-lo de burro. Burro é que ele não era.
As vezes o pai parava de falar mau do Jaime e falava do presente que iam comprar para a mãe na feira lá em São João Novo. O pai podia ser bruto mas nas datas especiais sempre dava um presente para a mãe. Mesmo que o dinheiro tivesse muito curto e escasso, para um presentinho sempre se dava um jeito. No caminho para São João Novo, tinha uma venda onde o pai sempre parava e dava ao menino um ou dois copos de Tubaina. Era bom. Vinha cheia de bolinhas de ar dentro. Quando descia pela garganta, chegava queimar . Depois de alguns goles vinha a vontade de arrotar....e o menino dava um arroto com cheiro de tutti-frutti. Depois de prosear um pouco com o dono do bar, o pai punha novamente o menino no ombro e ia estrada afora para o centro de São João Novo. Enquanto se afastavam do bar, no alto falante sempre tocava uma ou outra musica do Roberto Carlos. Naquele dia estava tocando a musica que dizia: “Eu prefiro as curvas, da estrada de Santos, onde eu posso esquecer....”e o pequeno ia olhando os barrancões de terra vermelha a beira da estrada curva, e imaginando que o homem que cantava devia estar falando daquela estrada ali mesmo. Devia ser domingo, pois o pai só o levava a passear de domingo. Ao chegarem naquele dia na feira do centro que ficava perto da estação de trem, o menino ficou maravilhado com tanta coisa que podia ver de cima dos ombros do pai. Frutas, tinha todas. Algumas que ele nunca havia provado.
—Qué uma banana muleque? Dizia o pai parando numa barraca de frutas. É claro que o menino dizia que sim, adorava frutas. O cheiro das frutas era coisa mágica. Eram mesmo cheiro de domingo e de feira.Fruta em casa era coisa rara. Então era melhor aproveitar as bondades do pai enquanto ele não mudasse de idéia.Era bom sentir que o pai mesmo tendo seu jeito bruto cuidava dele dando-lhe tubaina e frutas. Os outros meninos não gozavam de tal regalia. O Silvio porque era coxo e não podia andar muito sem sentir dores na coluna; O Jaime porque o pai parecia lhe ter uma certa antipatia. O menino então, como era menor, mais portátil, mais quietinho e menos levado era sempre a companhia do pai na ida a São João Novo.
Além da barraca de frutas, havia também muitas barracas com tecidos de todas as cores, redes de dormir, bolsas, cacarecos de cozinha e uma que chamou mais a atenção do guri, a barraca de brinquedos de plástico. Como fascina os homens o plástico. Usam para tudo e querem cada vez mais obter coisas de plástico para levarem para casa mesmo que as usem por pouco tempo e depois as abandonem pelos céculos que elas duram.
Mas, o que deixava o garoto com muita vontade de ter aqueles brinquedos de plástico era mais a cor chamativa dos brinquedos do que o próprio brinquedo. Ainda no ombro do pai o menino aproveitou o máximo que pode os poucos segundos em que o pai passou pela banca de brinquedos e se deleitou com a visão privilegiada do alto de um ombro. Seus olhos tatearam cada brinquedo, cada plástico colorido, até focarem um lindo aviãozinho azul. Poxa, se ele pudesse ter aquele aviãozinho. Mas é claro que o pai nunca iria comprar um brinquedo para ele. Então para não levar um não, ele não pediu foi nada. Só acompanhou com a cabeça virada para trás, o quanto pode, a imagem do aviãozinho ali na banca. Quando chegasse em casa ele diria para a mãe o quanto quis ter o aviãozinho, mas o pai, nem quis comprar.Quem sabe a mãe dava um jeito e fazia o pão duro do pai comprar o objeto dos seus desejos.
A relação que tinha com o pai era de amor, respeito e medo. Sabia que o pai para lhe esquentar o trazeiro, caso fizesse algo fora dos conformes não custava nada. Então ficava o mais quieto possível. Pelo menos assim tinha certeza de que não iria apanhar do pai por falar coisa errada. Assim, passaram pela feira.O pai comprou um corte de pano para que a mãe fizesse um vestido para ela. Achou que este era um bom presente para o dia das mães. Depois de fazer as compras necessárias para a semana, colocou novamente o guri nas costas e voltou para o sitio onde chegou perto do meio dia. O menino ficava admirado com a força do pai. Como é que ele agüentava carrega-lo tanto em cima dos ombros. Só as vezes, o pai parava e colocava o menino no chão para que andasse um pouco . A fome ia aumentando a cada passo que davam.
---Deixa de ser marica rapaiz, vamo, anda..... falava o pai quando o menino diminuía o passo. Um passo do pai sempre equivalia a muitos do filho. Ele era para o menino um gigante e não conseguia acompanha-lo. Mas quando o pai perdia a paciência, punha o menino nas costas de novo e caminhava mais um tantão.O pai além de carregar o menino, também levava duas sacolas com as compras que fizera. E assim chegaram ao Sitio do Expedicionario. O menino conhecia de longe que tinham chegado porque avistava o pinheiro enorme que tinha na frente da casa amarela à beira da estrada. Os cachorros tantos que havia no sitio vinham logo ao encontro do pai, talvez para ver se ele lhes dava um pouco do jabá que comprara. Vinham que vinham balançando o rabinho. Os patos e gansos ficavam no quintal revirando a laminha da água que vinha da pia para ver se achavam um arrozinho para comerem. Assim como os patos, distraídos com os afazeres de rotina, pareciam estar todos da casa, até que o pai dava um grito
----Ôooooo! Daí logo o Jaime e o Silvio vinham ver se o pai trouxe balas ou pãozinho da venda. A mãe, arrastando os sapatos do aparelho ortopédico também vinha para fora de muletas, receber seus guerreiros com o carinho que só ela sabia oferecer.
---Então meus anjos, foram bem de passeio?
----Bem o que mãe? O pai não quis nem comprar o aviãozinho azul que tinha lá na feira pra mim....
----Mas o que você ta falando muleque? Que diabo de aviãozinho era este que eu nem vi?
----Lá na banca de brinquedo de plástico pai, tinha sim, um aviãozinho azul.
----Mas porque você não falou na hora moleque? Porque não pediu?
-----Eu sabia que o senhor não ia comprar mesmo.
----Podia até ter comprado, mas você não pediu, quem não chora não mama muleque....
----Deixa pra lá né filho, depois o papai compra o avioãozinho pra você, disse a mãe piscando para o pai para apaziguar o garoto que já sentia o nariz doer como se tivesse levado um soco e uma lagrima correr nos olhos. Por que é que não pedira? A esta hora estaria brincando com seu aviãozinho azul.

Capitulo 2

A canoa virou
Descendo pelo trilho que saia da frente do rancho, ia dar numa lagoa grande que tinha uns pinheiros ao redor. Era lá que seu irmão, o Jaime, nadava de vez em quando, mesmo contra a vontade de seus pais. Mas o Jaime era esperto, tirava toda a roupa e tchuff na água que era para não chegar molhado em casa. Quando saia, ficava nu ao sol passando a mão para tirar a água da superfície da pele, ainda muito brilhante aos dez anos de idade. Ele via aquilo e ficava maravilhado com a liberdade de pássaro que aquela cena lhe transmitia. O Jaime era um pássaro. Apesar da sua bronquite asmática, ele sonhava em um dia entrar naquela lagoa também e nadar, nadar, até cansar como o Jaime fazia. Há como era livre o Jaime. Não tinha bronca do pai que ele não enfrentasse batendo o pé na sua opinião. Mesmo que isto depois lhe custasse uma boa surra e um banho de salmora para curar as feridas. O pai não era de brincadeira, ele batia de cinta, chinelo e chicote. Mas o Jaime era esperto. Se livrava as vezes da surra fugindo para o mato ou para a casa do vizinho mais próximo.Esperava o pai acalmar e depois voltava com a maior cara de pau.
---O Jaime é um bicho do mato, dizia o pai.
---Um pobre menino assustado, isso sim, dizia a mãe complascente.
---É por isto que este menino não se apruma, você não bate nem educa ele. Um dia vai pisar na sua cabeça.
--Você é muito bruto com ele, dizia a mãe. O Jaime é um moleque como todos os outros. Só tem um defeito, e deste você não o desculpa...ele....
---Ele é um vagabundo, um moleque desobediente e levado, isto é o que ele é. Se eu não o controlar na cinta, ele ainda acaba por virar um bandido.
Nos seus quatro anos de idade, ele ainda não atinava bem o que aquelas palavras significavam e o porque seu pai não tratava o Jaime como aos outros. Talvez o Jaime fosse levado mesmo e malcriado. Mas ele não levava isto em conta. As vezes , quando o Jaime
Fugia, ficava dias desaparecido. Mas ele, no fundo sabia que seu herói estava bem. Jaime não tinha medo de escuro nem nada. Quantas vezes o pai mandava ele catar lenha para o fogão quando a noite estava para cair no Buracão e ele ia. Cantava enquanto caminhava. Cantava que mais cantava e ia andando, catando gravetos e pedaços de pau para por no fogão a lenha.
“ Com Cristo no barco
tudo vai muito bem,
Vai muito bem,
Vai muito bem,

Com Cristo no barco
tudo vai muito bem,
e passa o temporal....”

---Cê num tem medo Jaime, de ir lá fora no escuro? Ele perguntava...
---Tenho não, sou forte, o escuro não da medo não.
Forte o Jaime era mesmo. Ele tomava leite direto na teta da égua Potira. Tinha uns mocotós que só vendo. Era moreno escuro, quase negro o Jaime. O pai por isto se aproveitava da força dele para coloca-lo para cuidar da horta e rega-la todos os dias. Às vezes o coração livre do Jaime se manifestava e ele não regava a horta coisa nenhuma. Daí o pai brigava e batia nele e a cinta cantava no coro do menino.
Mas nem tudo eram espinhos. Ás vezes a mãe mandava o Jaime na venda lá em São João Novo comprar açúcar ou qualquer outra coisa que faltasse em casa.
---Mãe, posso ir com ele? Ele pedia.
---Claro que pode meu filho. Cuida bem dele heim Jaime. Se tiver muito sol, para lá no seu Zé Paulo para tomar água.
E lá iam os dois pela estradinha que saia de frente do sítio. Andavam, andavam e andavam . Passava boi por eles, dentro das cercas de arame é claro.Passava também boiada... Mas o Jaime, nem ai com boi brabo. Entrava dentro do cercado para roubar carambola. Achava a maior graça em vê-lo fazer caretas quando as carambolas estavam azedas. As vezes eles passavam por pastos queimados e o menor dizia:
-----Jaime, porque é que eles colocam fogo no mato?
-----É para matar as cobras, respondia. Quando bota fogo no mato as cobras assoviam e saem no pau. Se você estiver na frente elas te atropelam.
-----A gente vai parar no seu Zé Paulo?
----Claro que vai, ô desingonçado, a tia Marina faz um suco de carambolas que é uma dilicia, ce acha que eu ia perder?
----Jaime, porque a estrada tem tantas curvas?
----Diabo de moleque perguntão sô. Praque ocê qué sabê?
----É porque se me solta aqui eu não sei volta pra casa não.
---Qui voltá é esse moleque, a gente ainda nem num foi. E ademais inté cavalo volta pra casa sozinho e ocê nem cavalo num é....ta parecendo mais é um burro.....e ria a valer com o pequeno.
Quando chegava na caso do seu Zé Paulo, como sempre. A tia Marina os recebia super bem.
---Como é que vão meus amores. E dava um beijo em cada um. Oi, parece que adivinhei. Sabia que ia ter dois visitantes importantes aqui. Então preparei um bolo de fubá bem gostoso e um suco de carambolo bem fresquinho.
Ele ficava impressionado como a tia Marina sempre adivinhava que eles iam passar por ali. Tomava o suco morto de sede e comia o bolo com fome de cão. Em casa nunca tinha bolo. Será que a tia sabia disto?
A tia Marina, que devia já ter a idade dos “enta”, vivia ali com o seu Zé Paulo. Mulher muito boa, não tivera filhos por algum problema físico. Adorava crianças. Ainda mais se fossem os filhos da comadre Ném . Ai é que tratava bem mesmo. Ás vezes, quando eles estavam comendo o bolo aparecia o tio Zé Paulo. Homem alto, magro, pele muito vermelha de tomar sol em pele branca e que trazia na cabeça sempre um chapéu de Santos Dumont. Para o pequeno, o tio Zé Paulo dormia e tomava banho de chapéu, não era possível ! Ele nunca vira o tio sem chapéu. Será que ele era caréca? Sabe-se lá.
----Como vão meus dois marrecos?
----Nóis vai bem Tio, graças a Deus.
----E a mamãe? Está bem?
E por ai ia o papo sempre muito cumprido , mas amigável to tio Zé Paulo.
Passado esta fase do passeio, tinham que seguir até a cidade. No caminho, o bolo de fubá ia descendo, descendo barriga abaixo até chegar lá no dedão do pé. Mas, daí é que vinha o pior, a volta, e o melhor....o rango na casa do tio Zé Paulo, onde sempre tinha carne e batatas. A cidade era um mosquito só. Daquelas que você passa e diz oi, tchau. Tinha a estação de trem de São João Novo, que era por onde a Vó e o Vô chegavam de vez em quando para visitar a família. Ás vezes vinha o Tio Gesse, a Tia Sônia, o Tio Heitor e a tia Ivani, o Tio Wilson e a tia Maria também visitar a todos lá no rancho do Pinheirão. A estação de trem para o pequeno como a morte é para alguns. Sabia que ela existia e que levava gente para algum lugar, mas sequer imaginava para onde. Via seus tios chegarem em São João Novo mas de onde será que eles vinham? Onde iriam acabar aqueles trilhos. Um dia o Jaime disse que uma rua termina em outra rua que continua e vai de rua em rua continuando um caminho sem fim. Mas ele não entendia bem isto. Todo caminho tinha que ter um fim. Ficava ali na porta da venda esperando o Jaime enquanto pensava na grandeza dos caminhos. Um dia usaria aqueles trilhos só para ver o que tinha do lado de lá. Daí, o Jaime comprava o açúcar, o jabá e os ovos. Seu João dava um “suco de groselha” para os dois, e eles se lançavam de volta pro Sitio do Expedicionario. O sitio tinha este nome porque tinha um pinheiro bem grande na frente que tinha um cheiro tão bom, destes cheiros que fazem a gente lembrar para sempre do lugar onde o cheiro exala. Chegavam de volta no sitio já entardecendo. O Jaime ainda tinha que pegar a lenha pra mãe pois ela precisava para fazer a janta. Como o Jaime, nestas ocasiões fazia corpo mole e não regava a horta dizendo que não dera tempo porque foi na venda, o pai ficava uma arara. Mas a mãe, com jeitinho, explicava que precisou de algumas coisas da venda e que mandou o Jaime buscar. Uma vez, numa dessas em que o espírito de passaro livre de Jaime aclarou, ele fugiu e passou dois dias sem aparecer no sitio, mas antes de dizer como ele passou as noites que ficou no mato, vamos ver que foi bem quando a Vó, o Vô e o resto dos parentes estavam de visita em casa. Foi o dia também, em que o pequeno pediu a prima Márcia em namoro. Para o ele aquele dia foi um fiasco. Seu herói sumira logo de manhã. Na noite passada ele tinha afrontado o pai e tinha apanhado bastante.O irmãozinho escutou o banzé. A mãe, coitada, apesar dos gritos nada pudera fazer para salvar o pequeno Jaime das cintadas. Quando pela manhã procuraram o Jaime, cadê? Nada de Jaime. Ele tinha sumido. Todos ficaram apreensivos pelo fato, mas o pai, que era um baiano muito querido dos familiares, dizia:
----Que nada, ele logo aparece com a sua cara de pau de sempre. Não regou a horta nem sarilhou água pra encher o latão. Eu não pudia deixar barato, tinha que acertar o pé dele.
Todos no fundo reprovavam o que o Baiano(era assim que chamavam o pai) fazia, mas eles apenas diziam algumas palavras que não faziam efeito algum no pensar do pai. O pequeno não sabia porque, mas Jaime gozava de uma simpatia imensa de todos. Devia ser porque o Jaime era grande, forte e bonito, um quase deus negro que só não o era porque era moreno escuro e não negro. O fato é que Jaime sumira bem no dia em que a Regina prima feia, e a Márcia, prima bonita, foram visitar o pequeno, levando a tira colo seus respectivos pais é claro. O pequeno amava aquela prima, e todos o incentivavam a pedi-la em namoro. Cá para nós, eles queriam era dar umas boas risadas quando a menina contasse que o primo do olho verde havia pedido ela em namoro. O menino fez umas graças para as primas no quintal do rancho. Mostrou a cabrita branquinha pra elas e até pegou a cabrita pela corda e puchou dizendo:
---Ceis qué vê como eu so forte? Sou que nem o Jaime, seguro nesta corda que não solto mais esta cabrita. E foi desamarrando a branquinha do pau onde estava ancorada. Dali um pouco a branquinha deu pra correr e puxar o pequeno. Ele que não queria largar a corda de jeito nenhum, tinha enrolado a corda na mão e nem que quisesse, conseguia largar. A branquinha danou a puxar o garoto pelo quintal, arrastando-o . ele de tanto nervoso que passou fez cocô nas calças e a Márcia correu para dentro para chamar um adulto qualquer para ajudar o menino a se soltar da corda que a branquinha continuava puxar para lá e para cá. Ao fim de tudo, vieram todos os tios e ajudaram o menino que já estava todo ralado de tanto arrastar no chão. A Márcia, ao ver que o menino fizera as necessidades na calça, gritou em alto e bom tom:
--Eu nunca vou ser namorada de menino que faz cocô nas calças.
E entrou no rancho dando risada. O menino, não agüentando a pilheria, saiu correndo chorando a vergonha que passou e só voltou muito depois, obrigado pela fome que sentiu perto da hora do almoço.
Mas ainda não tratamos do sumisso do Jaime. Dois dias se passaram e agora, com os preparativos da mudança, o pai já estava preocupado. Se o Jaime não aparecesse até o dia da mudança, que seria no domingo, como é que é a família poderia mudar. Os tios que vieram para ajudar na mudança iriam embora no domingo. Provavelmente teriam que ficar no sitio do Pinheiro até que o Jaime aparecesse. Na manhã da mudança, o Jaime apareceu para o pequeno apenas, logo cedinho. Escondido entre as moitas que havia na beira da cerca , o Jaime falou quando viu o pequeno passar:
---Ô zóio de estrela apagada, vem aqui.....
---Jai.....
----Cala a boca, moleque, não fala meu nome não que ninguém pode saber que eu estou aqui.
---a gente vai muda Jaime, ce não pode sumir assim não. Pêra que eu vou buscar um pãozinho pra você, deve ta com fome....
---Eu não posso voltar, se não o pai me bate. Bate sim, que ele é bronco que é só.
O pequeno buscou um pãozinho duro que tinha sobrado porque ninguém quis e trouxe escondido para o Jaime. Este, comeu o pão com fome de cão que nem sentiu o gosto. –Jaime, você não pode ser assim tão desobediente, hoje eu to te trazendo pão, mas como é que você vai comer almoço, janta.
Mal acabara o pequeno de dar seus conselhos ao Jaime, a mãe botou a cabeça para fora da janela e falou em tom baixo. --- Hei, vem aqui Jaime. Vem comer menino, que teu pai ta dormindo. Ele não vai te bater não.
O Jaime, meio ressabiado, entrou no rancho de paredes enfumaçadas e deu um abraço na mãe. Ela, chorando disse.

--- Jaime, meu filho, porque você faz isto comigo, some deste jeito e eu nem posso sair para te procurar. Onde você estava? Onde você dormiu menino, nossa você ta todo molhado....
---eu dormi dentro da canoa mãe. Eu cobria a canoa com uma folhas de coqueiro e dormia dentro. Durante o dia eu saia caçando umas frutas no mato para comer. Quando escurecia, eu vinha tomar leite da égua. Sabia que ninguém sai de casa a noite com medo de cobra. Acontece que justo hoje, eu levei um susto ao acordar e dei uma virada brusca e a canoa virou comigo dentro. Ainda bem que eu sempre amarrava ela no raso, então só tomei foi um banho.
O pai, no sábado, tinha levado uma chamada do sogro.
----Zaias, (o nome do pai era Isaias), voce não devia tratar o menino aos pontapés. É claro que ele fica com vergonha quando você briga com ele e os outros da família escutam. É por isto que fugiu. Vê se quando ele voltar não vai bater nele. O que fez fugindo, são coisas de criança, logo vai passar desta fase e não vai aprontar mais destas.

--Tá bom seu Nestor, disse o pai ao sogro. Eu respeito muito o senhor. É que este moleque é mesmo um traquinas, tira a gente fora do sério.
E assim, quando o pai viu o Jaime, passou batido por ele. O Jaime se encolheu todo mas o pai disse
. –Precisa fugir não moleque. Hoje nos vamos mudar para São Paulo e quando chegar lá espero que não faça mais das suas.
Jaime baixou a cabeça. A mãe sorriu para o menino fugido com um sorriso terno que curava todos os ralos e as dores nas costas que causaram as noites na canoa.

Capitulo 3
Lagoa das taboas

Naquele dia de mudança, o pequeno mal cabia na casa. Era tanto movimento de móveis passando para la e para ca que ele sempre se sentia atrapalhando aos tios, tias e avós que ajudavam a carregar as tranqueiradas da família. Movimento, trançagem de gente, lufa lufa, burburinho.
O pequeno gostava muito de dias em que a família se reunia toda. Lembrava ocasioes em que todos os tios vinham para o Pinheirão para fazer a visita mensal.Que alegria sentia ao ser jogado para cima num vôo pássaro promovido pelo tio Heitor, o magrão. Os carinhos da tia Sonia e da vó eram tudo para o Jaime e o pequeno e também para o Silvio, o irmão do meio. O Silvio era um menino muito bonzinho de quem não falamos até este ponto porque o pequeno mal o notava. Como ele era obediente aos pais, nunca ou raríssimas vezes apanhava. Tinha um defeito físico, uma perna mais curta que a outra. Era franzino e cabeçudo e tinha um queixo enorme. O pequeno o chamava de queixada, coisa que ele abominava. Mas voltando a visita dos parentes, quando ocorriam, eram muito bem vindas para todos os meninos. Balinhas e docinhos garantidos, trazidos pelo Avô Nestor. Pão doce delicioso trazido pela tia Ica. Os pequenos só pensavam nas guloseimas que uma visita daquelas poderia trazer. Para Nem, a mãe, aquilo era muito mais do que apenas a comida boa que traziam por saberem que a família do pequeno estava numa situação difícil. Era a oportunidade de matar as saudades da mãe e do pai, de rever as irmãs e irmãos, que sempre foram muito unidos.
` O sábado em que eles vinham era um alegrão só. Brincar com as primas e os primos até cansar. Menos o Jaime que vira e meche era chamado para fazer isto e aquilo e quando não ia, já sabe, cinta nele. Depois vinha o domingo. Enquanto o sol estava bem amarelo o pequeno pensava em como era bom saber que teria ainda por um pouco o sorriso e as brincadeiras do tio Heitor Magrão, o cangote do tio Gesse para andar de cavalinho e o bonecos de papelão que se mexiam que o avô Nestor tirava dos bolso inadvertidamente e começavam a falar e pular em suas mãos. Tinham a voz do avô, mas eram eles quem falavam e pulavam pendurados num trapézio de cordão. Há, que boas lembranças. Agora estavam mudando do rancho porque o Natalino, o caseiro do sitio, roubava as galinhas a comia.Quando o Tio Heitor Gordão dava por falta das galinhas, o Natalino dizia que o pai foi quem pegou para comer .Logo o pai que detestava aquela situação de morar ali de favor e evitava a todo custo dar motivo para desentendimentos. O tio Heitor gordão, o dono do sitio ficou por fim muito furioso e mandou o baiano desocupar a casa. Como aquele lugar não tinha emprego mesmo e o pai vendera um sitio que tinha perto dali por não conseguir cultivar plantação e sustentar a família, o casal resolveu que mudar de volta para São Paulo não seria uma má idéia. O pai tentara se empregar na cidade mais próxima, mas não conseguira nada. As crianças estavam mal nutridas. O menor, de quatro anos era muito doentinho e vivia dando correria para o hospital em São Paulo onde ficava dias no balão de oxigênio. Realmente era hora de mudar de São João Novo. Então, tudo dentro do caminhão agora, era só passar no seu Zé Paulo e se despedir de todos e depois seguir rumo a São Paulo. Mas impregnada na memória do pequeno como um quadro na parede ficou a imagem do Sitio do Expedicionario e a lagoa das Taboas onde o seu herói, o Jaime tinha dormido duas noites na canoa sem medo de onça ou lobisomem nem nada. Nunca mais poderia arriscar-se a noite, como tanto quisera, e ver a lua refletindo na lagoa .Devia ser linda a lua refletida na lagoa.O moradores da lagoa, sapos rans, grilos, vagalumes e pagalumes todos cantando para embalar o sono do Jaime na canoa. Não andaria mais de canoa com a avó cantando a musica “a canoa virou” e colhendo taboas vermelhinhas para destrinchar e fazer travesseiro macio macio.A lagoa das Taboas ficaria no vale da lembrança apenas. Serviria como comparação para quando pela primeira vez o pequeno visse o mar .

Capitulo 4
A praça do sossego



A mãe chorou ao se despedir da comadre e do seu Zé Paulo. Eles tinham sido muito bons para ela ali naquele canto de mundo. Seu Zé Paulo várias vezes tinha aplicado injeção em algum menino que estivesse doente ou mesmo nela. Por ser paraplégica tinha ganhado lugar especial no coração da comadre Marina e do seu Zé Paulo. Mas, agora, dentro da cabine do caminhão sacolejante, ia chorando pela estrada afora.
---Bola pra frente, que atrás vem gente. dizia o pai tentando consolar.
A viagem para São Paulo não demorou muito. O pequeno nem se dava conta da situação de mudança, éra como se estivesse passeando. ‘Vou ali, volto já sá?” Não sabia que nunca mais tomaria o suco de carambola da tia Marina, nem veria o homem do chapéu grudado na cabeça, o seu Zé Paulo. Mudança de cenário, mudança de vida. Agora iria conhecer a Praça do sossego.
` A praça do Sossego ficava onde hoje se situa o cruzamento da av. Politécnica com a rua Jorge Ward no bairro do Rio Pequeno em São Paulo. O que hoje se vê apenas como uma ponte a mais neste cruzamento, era um importante ponto onde os carros cruzavam o rio para lá e para cá. A ponte estreita por onde os carros passavam era chamada de “A ponte do sossego”. Ao lado dela, quase coladinho,havia um bar amarelo. O tio Wilson, como vira que o pai era muito comunicativo e sabia fazer um bom sarapatel, indicou a compra do ponto como uma boa saída para a família. Morariam num barraco de tábuas que havia atrás do bar na beira do rio. O mesmo dono que alugaria o bar, também alugaria o barraco onde a família iria morar. O pai nunca tinha sido dono de bar mas, tinha esperanças de que aquele empreendimento altamente lucrativo, lhe daria a oportunidade que tanto quisera ter em São Paulo.
---O bar enche de gente todos os dias, disse o tio Wilson. O homem que estava dirigindo o bar era um tonto que não sabia se aproveitar do movimento para vender uns petiscos a mais e ganhar um belo troco. Fazendo sarapatel e churrasquinho de gato Zaía, você vai lucrar bem mais do que ele que só vendia pinga.
----Mas eu queria mesmo era comprar aquela casinha que o seu amigo tava vendeno. Será que ele já vendeu?
----Meu amigo viajou. Agora só daqui a alguns meses para falar com ele. Você não tem onde ficar com a sua família Baiano, faz o que eu to te falando que eu vou estar por perto e te dou umas dicas.Ce vai ver, vai dar tudo certo...
----Bom, eu não queria viver de vender pinga, mas, já que você está dizendo que é bom eu aceito, vou tentar....
E assim, Izaias e a família vieram morar no bar amarelo da ponte do sossego. O menino, assim que assentaram mudança e que a casa ficou, dentro do possível arrumada, começou a fazer suas expedições para conhecer o local.
A mãe dizia---Cuidado Nado, aqui não é igual o sítio do Pinheirão. Na rua passam carros, carroças e ônibus. Se você abusar, pode ser até atropelado. Eu não vou poder estar te olhando o tempo todo. Estou esperando uma irmanzinha sua filho, não posso abusar e ficar saindo de casa me esforçando. Então, ajuda a mamãe. Se cuida. Não fica que nem os moleques que abusam da sorte colocando a mão nos ônibus enquanto eles passam. Você entendeu?
O menino acenava que sim com a cabeça, mas no fundo não atinava em nenhuma daquelas palavras. Na verdade achava a maior graça em colocar a mão nos ônibus em movimento e, dias depois, seria pego em flagrante pela dona Rosalina, a vizinha, fazendo exatamente o que sua mãe agora lhe pedia para não fazer.
A mãe lhe deu uma tamanha bronca, mas ele não ligou até que o pai chegou em casa e lhe deu uma boas chinelados.
O barraco a beira do rio ficava no fundo de um corredor entre o bar e um grupo de casas de aluguel que eram do mesmo dono, um português que vivia de renda de alugueres.O barraco onde o menino estava morando, na verdade nem era do português. Fazia parte de uma favela que começava ali, na praça do Sossego e ia ladeando o rio pequeno até se perder de vista. O menino achava que o rio era tão limpo quanto a lagoa das taboas lá do Sitio do Expedicionario. Um dia até viu passando um mandi chorão navegando rio abaixo. Se tem peixe, deve ser água limpa, éra que o menino tinha ouvido falar. Fez diversas excursões de aventura rio abaixo. Ia andando pela margem do riosinho, passava por debaixo da Ponte do sossego. Ás vezes parava um pouco ali para brincar na areia com uns insetos que cavavam na areia. Os outros meninos tinham dito que aqueles insetos eram “doninhas”. Na falta de outro nome ele achava que eram doninhas mesmo. Nunca tinha visto uma doninha. Para ele não fazia diferença. Na verdade eram um tipo de grilo que vive na areia de rios. Ele adorava represar a água e ver as doninhas saindo dos buraquinhos onde viviam, agora alagados, e cavando outros buracos em areia mais seca. Pegar os bichinhos na mão ele ainda não tinha coragem não, mas mexia neles com um pausinho que sempre arranjava por perto. Quando estava embaixo da ponte as vezes olhava para cima e via imensas teias de aranha. Ficava observando aqueles pontos pretos se mexendo. Soube por seus novos amiguinhos que eram aranhas enormes e que ele nunca devia mexer com elas porque podiam picar. Normalmente quando lembrava de olhar para cima e via as teias, pensava que era hora de ir dando o fora. Sua aventuras a beira do rio eram muito boas, mas sentia falta de amigos para compartilhar as coisas que via. As vezes, quando voltava para almoçar e via a mãe encostada na pia lavando a louça, com o vestido todo molhado na altura da barriga já ia contando tudo o que viu. Tinha uma memória e tanto, falava de cada detalhe.
---Mãe, hoje eu vi uma caixa de pau boiando no rio. Dentro dela tinha uns panos vermelhos e umas galinhas mortas. Quem será que ia fazer isto com as pobres das galinhas?
---Há meu filho, tem gente que é ruim mesmo. Mata os bichinhos só pra fazer macumba.
---O que é macumba mãe?
---Macumba é coisa do diabo filho. São pessoas que querem fazer mau para as outras e ai ficam matando galinhas para este fim. Quando você ver macumba jogada por debaixo da ponte vê se não mexe heim filho.
---Tá mãe. Sabe, eu tava aqui pensando. Até quando eu vou ficar com este nome horrível que tenho?
---Bom filho. Nome nunca se muda. Seu nome o acompanha para sempre. Nunca se deve mudar o próprio nome.
----Mas o meu nome é muito feio mãe. Rodinaldo, que nome horrível. Não da pra trocar não?
----Meu filho, seu nome é lindo. Quem o deu a você foi a sua avó e seu pai. Eles foram juntando alguns nomes e misturando até que saiu este nome. Sua vó sempre fala: Que orgulho terei um dia quando vir numa porta pregado o nome Dr. Rodinaldo.
----Mas mãe, com este nome meus amiguinhos vivem me gozando. O que devo dizer a eles?
----Não diga nada. Você não tem que ter um nome comum como o deles . João, Pedro, Paulo qualquer um pode chamar, mas Rodinaldo é um nome especial.
----Tá bom mãe.
A mãe sentiu que dali viria mais chumbo grosso. Mas por enquanto conseguira desviar o menino de querer trocar seu nome. Ela concordava com ele no fundo, mas não podia dizer para não o deixar mais apreensivo com alguma coisa que provavelmente nunca poderia mudar.
Então fora o pai e a vó que lhe deram aquele nome horrível? Já sabia quem culpar pelo feito infeliz.

Capitulo 5
O cinema de sombras e  a caixa de sonhos

Era um tempo em que tv era uma coisa só para os mais abastados, ali pelos idos de 1967.  O menino ficava assistindo desenhos do Mikey e Papa-léguas em frente a uma loja que concertava tvs e tinha algumas tvs ligadas a mostra nas virtines. Era o tempo da TV preto e branco ainda. Seus irmãos o levavam com a permissão da mãe para sentarem-se na porta da loja e ficarem ali assistindo os desenhos.
Dona Rosalina também tinha uma TV. Era mulher, aleijada e pobre, mas havia conseguido comprar uma TV com o que ganhava em sua barraca de feira vendendo roupas infantis. Á noite, todo mundo da vizinhança ia lá na dona Rosalina para assistir "irmãos coragem", a novela da TV globo. Ficava a casa apinhada de gente até o fim da novela. Dona Rosalina tinha duas filhas e um filho deficiente. Tinha a  Dirce, a Dulce e o Alexandre. Foi na casa dela que o menino aprendeu a detestar sopa de mandioquinha. Ele via a Dona Rosalina dar a tal sopa para o menino e ele babava muito para comer e fazia a maior sujeira porque só mexia a cabeça. O cheiro da mandioquinha virou algo repugnante para o menino e ele nunca mais quis comer sopa desta raiz. A Dulce era meio dada a fazer coisas com os meninos num porão vazio que havia ao lado da casa do menino. Ela se enfurnava lá enquanto os meninos faziam todos os tipos de pergunta para ela e ela ia respondendo. A maioria das perguntas eram sobre sexo. Na verdade, os meninos maiores queriam fazer besteira com a Dulce, mas o pequeno nunca viu nada disto acontecendo. Mas os meninos pediam para que Dulce deixasse eles colocarem as mãos nos peitos dela e em outros lugares. Ela as vezes deixava só colocar as mãos nos peitos, nada mais que isto. Não foi a toa que a Dulce engravidou logo e foi obrigada a casar cedo, deixando a Rosalina, a Dirce e o Alexandre morando sozinhos sem ela.
Na casa do menino tinha rádio. Sua mãe gostava de ouvir o programa "Moraes Sarmento" Que tinha muitas musicas antigas do Vicente Celestino, do Carlos Galhardo e de vários cantores das antigas que o menino não gostava muito. Ele gostava mesmo era de Caetano Veloso, Beatles, Vanderley Cardoso, Nelson Ned,  Evaldo Braga, Jair Rodrigues e outros cantores da época.
O menino as vezes mijava na cama. Ficava desesperado porque sabia que iria apanhar do pai. Uma vez, pela manhã, desesperado e mijado, perguntou ao irmão o que fazer para não apanhar.
--Suba na escada e fique ali no sol até que sua roupa seque e torça pro pai não sentir o cheiro que vai ficar.
A mãe logo que percebeu chamou o menino e o trocou para evitar que seu pai o espancasse por estar mijado.
Uma das casas de aluguel vizinhas a que o menino morava esvaziou-se um dia. A porta ficou entre-aberta. Ele, ao passar por ali, depois de brincar de colocar a mão na lataria dos ônibus enquanto passavam pela rua Jorge Ward viu que podia entrar na casa. Entrou, fechou a porta só deixando uma frestinha de abertura e ficou no escuro dentro da casa. Numa das paredes se projetavam sombras quando pessoa e veiculos passavam pela rua.
O menino, encantado com o cinema que via na parede, ficou ali no chão, sentado vendo o progredir das sombras e dos acontecimentos naquela tela de cinema. Ficou ali imaginando as histórias que aquelas sombras poderiam lhe contar. É como se tivesse uma TV dentro da casa, só que o som era dos carros que passavam lá fora e as pessoas passavam pela parede mudas ou as vezes ouvia uma ou outra conversa de pessoas passando juntas.
O pequeno gostava de liderar a brincadeira entre a molecada e mandava em todos eles. Era meio que um lider do pedaço.Dava ordens para que a molecada trouxesse tijolos e pedaços de pau para que construissem uma cabana em um canto do quintal. Quando um menino não trazia nada nas mãos, o pequeno berrava ---Seu burro, não te mandei trazer tijolo ou pau para construir a caverna? você é surdo?
Um dia seu pai presenciou um destes acessos ditatoriais do moleque e lhe deu uma boa sova para que aprendesse a ser mais humilde.


Capitulo 6
Radinei- A primeira missão

Quando o menino tinha de 4 para 5 anos, sua mãe deu a luz a uma irmã. Ela nasceu com síndrome de Down. Ná época o menino nem sabia o que este nome queria dizer, mas sua mãe falava em "mongolismo". Para o menino era apenas um bebê como outro qualquer. Como

Casa da Vó
Capitulo 7
Pão com ovo, mistura esplosiva.
Capitulo 8
Favela
Capitulo 9
Brasil Japão, entra burro e sai ladrão...
Capitulo 10
A familia do seu João
Capitulo 11
Capitulo 12
Capitulo 13
Capitulo 14
Capitulo 15
Capitulo 16
Capitulo 17
Capitulo 18
Capitulo 19

Capitulo 20

Ultima fuga do Jaime

O menino, como é sabido, já há algum tempo carregava o peso de sustentar sua família nas costas. Estava iniciando em sua vida de adolescente e isto lhe traria muitos problemas. Era só começar a pensar com a cabeça de adolescente, que normalmente não é a do adolescente, mas sim do meio que o cerca, que se revoltaria contra o pai que abandonara sua família dando a ele a obrigação de continuar a remar para que o barco não ficasse a deriva. Sua mãe fazia o que podia para manter a economia da casa em dia.Costurava para fora para ajudar nas despesas. Não deviam para quase ninguém, a não ser para a Joal, uma loja de roupas que havia no Rio Pequeno e que vendia as roupas para a família a prestação.Que ironia, uma costureira comprar roupas a prestação. Mas com o passar do tempo, quando a industria da confecção começou a produzir mais do que conseguia vender, o preço das roupas feitas ficaram mais baratos do que o pano para faze-las. Era por isto que Odete já não conseguia ganhar quase nada com suas costuras. O que sobrava para ela fazer era pregar um zíper aqui, fazer uma barra de calças ali e assim ia tocando devagarinho o barco. O menino trabalhava já registrado e ganhava seu salário mínimo, o que magicamente ele fazia se transformar não so no pagamento das dispesas da casa, mas no seu sonho de ter um terreno. É isto mesmo. Com 14 anos ele tinha um terreno comprado e quase pago no Jardim Arco Íris, na cidade de Cotia, que serviria, pensava ele, para morar no dia em que se casasse. As vezes, em seus momentos de folga ele subia no galho do abacateiro do quintal, que ele mesmo plantara e ficava a tarde toda bem lá em cima sonhando com seu futuro. Seria ele um veterinário? Um aviador? Um biólogo? Ficava ali no frescor da brisa noturna a fazer conjecturas sobre que destino lhe podia aguardar. O barqueiro do inferno, isto é que ele era. Há, o leitor não conhece a historia antiguíssima dos três fios de cabelo de ouro do diabo?
Quando nosso rapazinho tinha 6 anos, aprendeu a ler e escrever com os avós. Livros infantis naquela época não eram muito acessíveis como hoje o são. Mas sempre recordava uma vez ter lido uma historinha num livro de capa azul de quem não se lembrava a autoria, mas cujo resumo segue:
Era uma vez um rei muito ambicioso que para sustentar o luxo em que vivia, sempre aumentava os impostos. E o povo tinha que trabalhar cada vez mais para que o rei fizesse cada vez mais dividas com outro paises, comprando carruagens folheadas a ouro, roupas de seda importada e muitas coisas fúteis. Nasceu no reino um menino que era bom de coração e que teve sobre si uma predição de um mago que dizia o seguinte: Tu serás muito poderoso, mais do que o é nosso rei. E governará nossa terra em teus dias de força de moço.
O rei que não era bobo nem nada, foi ouvir falar do menino, logo mandou mata-lo a fio de espada. Mas seus pais que souberam da intenção do rei o despacharam numa cesta calafetada dentro do riacho que desceu riacho afora até chegar numa aldeia onde morava um moleiro muito bom de coração e sua esposa, que não podia ter filhos. O rei procura o menino pelo reino todo, e depois de muitos anos o encontra já adolescente, quando estava passando pela aldeia onde o moleiro morava. Tenta mata-lo novamente, despachando o menino com uma carta para a rainha que dizia: quando receber esta carta, minha rainha, mate imediatamente o portador. O menino que era muito bom obedeceu o rei e levou a carta para a rainha. Porém no caminho, precisou dormir numa estalagem e os bandidos que la residiam roubaram a carta que ele trazia porcausa do selo do rei que viram por fora abriram. Ao lerem, ficaram com pena do rapaz e falsificaram a carta da melhor forma que puderam desta vez com os seguintes dizeres: Minha rainha, trata muito bem deste rapaz que de agora em diante passa a ser meu protegido. Bom, a historia segue com muito mais detalhes, mas ao fim, quando o rei já tinha perseguido muito o rapaz, porém este sempre, mesmo que ingenuamente escapava das ciladas, o rei, para dar cabo da vida do pobre, diz o seguinte a ele:
Vá até o inferno, onde vive o diabo e me traga de lá três fios de cabelo de ouro do tinhoso. Se me cumprir este desafio, te darei minha filha em casamento e meu reino será teu reino.
Que alhada, como é que o jovem conseguiria os três fios de cabelo de ouro? Bom, continuando o resumo, a mãe do diabo se compadece do rapaz e lhe dá além dos três fios de cabelos a solução para três charadas que o rapaz tem que resolver no caminho de volta. Uma das charadas é a que o barqueiro do inferno lhe havia perguntado. Como posso eu largar do remo e sair do barco, pois a milênios vivo aqui atravessando gente sem nunca poder me livrar de tal encargo. Depois que o rapaz pula do barco, dá a solução ao barqueiro: -----O próximo que entrar em teu barco, joga-lhe o remo nas mãos e pula do barco que ele ficará no teu lugar. Com a resposta das outras duas charadas o rapaz fica riquíssimo, mais poderoso do que o próprio rei. Quando então chega a presença do rei e entrega os três fios de cabelo de ouro, o leitor já pode imaginar o fim da historia. O rei é ambicioso e pergunta ao rapaz onde fica o inferno de onde veio, pois se lá há tantas riquezas, ele também quer ir e conquista-las. O rapaz, após relutar, indica o caminho avisando que o rei tome cuidado e não atravesse o lago do inferno. O rei, teimoso vai e pula dentro do barco onde fica preso para sempre sendo o barqueiro do inferno e atravessando pessoas para sempre como está até hoje.
Bem, esta historia toda para dizer que o garoto sentia-se como o barqueiro da historinha. O pai era o diabo que lançou-lhe aquele feitiço que não o deixava nunca sair do barco. Incitava-o á responsabilidade para com a mãe paraplégica, a irmã que tinha síndrome de Down e até o irmão do meio, que já havia partido, mas era vivo quando o pai se foi. A casa onde morava o garoto era um verdadeiro mausoléo e nunca lhe sobrava dinheiro para concertar os reboques que caiam da parede, ou as rachaduras da lage que se tornavam em verdadeiras cachoeiras quando chovia forte. Então maldizia o pai. Amava-o mas, maldizia-o como quem fala de um cão sarnento. Uma vez, mesmo sem se aperceber que era por causa da historia que houvera lido quando em criança até sonhara que na beira de um grande rio havia uma enorme caravana de gentes e bichos. O cenário era místico pois não se via a cara de ninguém, todos usavam toalhas de rosto na cabeça e essas lhes cobriam as faces. De repente surge um problema. Uma das moças da caravana está muito mal. Só o garoto seria capaz de leva-la numa canoa até o outro lado do rio. ---Mas porque eu? Perguntou no sonho. Porque a você foi dado esta dádiva, dizia o velho que quando deu seu rosto a conhecer ninguém mais era do que seu próprio pai. Leve-a até a outra margem rapaz, entre na canoa com ela, vamos. Lhe dou para ajudante um amigo de sua escolha que o ajudará a fazer a travessia.
---Mas tem muita neblina, como vou saber se estou indo para o lado certo?
---Simplesmente vá rapaz, e a neblina se dicipará com o tempo.
Ele escolheu um amigo que tinha na época, o Paulão que trabalhava na agência da Eletropaulo de Osasco. E lá foram os dois e a menina a navegar pelo rio. Enquanto remava, via a margem e as pessoas sumirem na neblina.
---Mas como saberemos que estamos remando para a outra margem? Perguntou o Paulão. Mal podemos ver um ao outro com esta neblina..... A menina, nada dizia, permanecia ali, com a toalha na cabeça, sentada no meio do barco. Parecia ter muita dor. Mas apesar da dor, nenhum gemido ou fricote.
---bom, disse o garoto, a idéia que tenho é a seguinte. Tenho aqui no bolso muitos metros de uma linha de anzol com a qual pretendia pescar. Amarro uma pedra que também trazia no bolso na esperança de caçar nhanbú e atiro a linhada para a frente do barco. Remamos até que a linha se aprume e fique empezinha na água, assim saberemos que estamos indo sempre para onde atacarmos a linha. E sempre atacaremos a linhada para a frente do barco. E assim ele fez até que viu do outro lado um enorme barranco. Ao pé do barranco a água corria com força de rio e começou a levar o barco bem rápido. Entraram por capins que oscilavam dentro da água e seguiram riosinho afora, já agora num rio bem pequeno, um córrego, que tinha barrancos da altura de suas cabeças enquanto estavam sentados no barco. De repente, quando estavam pelos cálculos do garoto quase chegando á outra margem, apareceram anjos, muitos anjos voando por cima do barco e levaram a moça no colo voando por cima das taboas e moitas de capim que ladeavam o rio. O rapaz se desesperou porque sabia que não podia perder a moça. Era sua obrigação ficar com ela até o fim da lida, até onde lhe pudessem dar soccoro. E quem eram aqueles anjos para roubarem de si sua protegida. Parou o barco imediatamente no próximo píer de madeira que viu.
Fica ai Paulão, olha o barco enquanto eu procuro a moca. Aqueles anjos mequetrefes não devem te-la levado longe. Vou acha-la. Saiu correndo pelo trilha que saia do píer. Entre flores, muitas flores. Chegou a uma estrada asfaltada, olhou em volta, não viu nada. Continuou andando seguindo uns cachorros que iam pela estrada. Os cachorros iam bem depressa e ele corria atrás também pensando: Eles devem me levar até ela. Andou bastante quando encontrou um portão. Viu uns guardas na portaria. Sabia que eles não o deixariam entrar no hospital para ver se a mulher estava lá. Tirou a pedra com a linhada que trazia no bolso e atirou uma vez para a frente, tentando fazer com que os cães fossem naquela direção e distraíssem os guardas. Era hora de almoço, e os guardas estavam comendo a comida da marmita que trouxeram de casa. Nm deram bola para os cachorros. Ele puxou a linhada e jogou de novo. Desta vez todos os cachorros começaram a latir e correram na direção da pedra pensando que era um pedaço de carne. Os guardas deixaram seus postos e foram ver no que os cães estavam latindo, foi quando ele conseguiu entrar no hospital. Ao entrar, algo lhe dizia que ele procurava por sua mãe. Ela que a principio lhe parecia ser sua irmã agora em sua mente se transformara na imagem de sua mãe. Andou pelos corredores procurando. Só via macas vazias com lençóis muito brancos estendidos por cima. Aquele lugar não tinha cheiro de hospital não, parecia mais uma colônia de férias. Foi quando encontrou com sua mãe num dos corredores. Ela parecia muito feliz. Estava tomando água e comendo frutas.
----Eles estão te tratando bem aqui mãe?
` ----Claro que sim filho. Por que te preocupas?
----Preciso leva-la de volta. Pode me acompanhar?
----Claro que sim. Embora eu seja paralítica, também sei correr muito bem quando é preciso, até voar se quiser.
----eles não vão deixar a gente sair daqui vão?
----claro que vão filho. Podemos sair em paz. Não sei porque você achou que não te deixariam mever.
----Sei lá, depois que aqueles anjos a roubaram de mim, suspeitei que os guardas eram maus.
---Pegue umas frutas para levar para o Paulão e vamos embora filho.
O garoto lançou mão de algumas frutas que comeu e de outras que levou para seu amigo que o esperava no barco. Ao sair, não viram guarda algum na portaria do lugar. Quando deram uns passos para fora do portão, viram os anjos que vinham que vinham voando atrás deles. Ele jurou que desta vez não ia perder a mãe pros chatos dos anjos. Agarrou firmemente a mão dela e correu muito veloz. Admirou como sua mãe, mesmo paraplégica conseguia correr tão rápido. Voltaram pela estrada até a trilha de flores que levava de volta ao barco. Quando finalmente chegaram ao barco parecia que os anjos tinham ficado para traz, mas podiam alcança-los a qualquer momento.O Paulão estava roncando, dando uma bela duma cochilada no barco. O garoto deu-lhe uma sabão.
---Então eu me mato para conseguir traze-la de volta e você fica ai dormindo seu polha......
----Desculpe ai garoto. Eu tava mesmo com sono ta. E ai, vamos embora?

Neste momento a multidão de anjos aparece ao longe o que obriga o garoto e a mãe a pular no barco para tentar escapar. Mas o sonho acaba.....
Barqueiro do inferno sim. Não pela mãe, aquela criatura maravilhosa que tinha asas na mente. Contava sonhos maravilhosos que tinha durante a noite. Cantava sempre. Tinha uma bela voz, já agora um pouco desafinada pelo tempo, mas ainda conseguia entoar uns hinos da igreja adventista, religião em que fora criada.
O menino agora em seus 14 anos já deixara de ter o Jaime como herói.
----Na verdade o Jaime era um louco, pensava. Depois de tudo que a mãe fez por ele, ele não podia ter feito isto, não podia. Maldito Jaime, eu o amei como irmão legitimo e veja só o que ele nos fez. Bem que diz a vovó, filho ‘alheio, brasa no seio’.
De vez em quando vinha algum amigo do Jaime perguntar por ele, e a resposta sempre era dada assim;
Graças a Deus não temos noticias do Jaime, ele sumiu e nunca mais voltou.